Miríade
I

Calmo e tênue desespero,
que corre solto por caminhos desiguais,
preenchendo-me o peito
dessas lepidopteras estomacais.
Ocupa-me com esmero
esta nuvem de insetos imortais.
Este denso e insolente hospedeiro,
que do tórax faz seus casulos artificiais.
Roubam o ar,
feito uma tragada infinda,
preenchendo de asfixia
a paixão sobrevinda;
nascendo, sem propósito,
entre as dobras da colcha puída.
Em cada vão que revela
um pedaço de tua carne lisa.
Enquanto a luz febril
adentra à janela furtiva
e com seu feixe hostil
tinge sua pele desprovida.
Minha palma, de afluência cursiva,
sem medidas atira-se mar a dentro
em tuas curvas à deriva.
- Desperta-te em cálida preguiça. -
Raia os braços para fora da colcha
no alvorecer de tua beleza escondida,
- oculta pelos cabelos, pelas cobertas encardidas -
e ao virar-se, olha-me por dentro
atravessando minh’alma lasciva.
II
Em estalido se estanca a cena,
com, de uma praga, a morte prematura
que voando, antes mesmo de picar,
veio a encontrar a palma tua.
Mosquitos carniceiros,
ocultos pela estatura,
que em meio as minhas borboletas,
comiam carne nua.
Rodopiam no hálito de fogo
do átrio sem brisa,
sobre o corpo quente da cama
que enrosca nos lençóis as panturrilhas.
Enquanto nós, grudados, sem desafogo,
na extensão da colcha concisa.
Éramos entregues ao mesmo panorama
de sono, suor e saliva.
Saliva, não de apaixonados beijos
mas de úmidos travesseiros
que guardam entre bocejos
a memória de sonhos sorrateiros,
nacos e pedaços,
de adormecidos devaneios,
e que dentro das cabeças - feito vespeiros -
despertam conosco os nossos anseios.
Azoinavam de passagem ao pé do ouvido
mesclas de sonhos e de afazeres.
- contas à pagar, o sonho já corrompido -
Quantas coisas a girar, no ato de amanheceres,
quanto raios a se firmar, sobre nossos rotineiros deveres.
III
Ao deserto branco das fronhas
dos cicerones em afastamento,
onde duas longínquas cabeças habitam
cada qual - longe - em seu próprio pensamento.
São feito dos sonhos preocupação,
que matam a ferroadas as borboletas,
e elas pávidas em rendição
deixam-se cair obsoletas
Sobre a colcha, uma batalha medonha,
- retalhos de asas, frágeis manchas coloridas -
sanguinária e enfadonha,
com rastro de patas e antenas partidas.
Tal qual mosaico,
o cobertor é agora construído,
e somos velados em nacos de amor quebradiço,
ao tétrico canto de vespas em coro zumbido.
Não há mais por dentro borboletas,
não há no ar mais mosquito.
Há a angustia por levantar
por desfazer-se desse ar aflito.
Sacudir as asas
deixar tombar da colcha o colorido,
e atender nossas rotinas rasas
pelo vespeiro impelido.
Lavar a cara, enxaguar a vida.
Dos olhos tirar o peso,
para vestir a bota puída.
E no café a goles largos, ainda leso,
mirar-te de novo, em desleixado desapego…
IV
Sentir retornar o brilho
de minha vista dormente
e ver-te de novo
- tão próxima - a minha frente
enquanto no estômago vago
percebo à cair como ogivas,
não o café amargo,
mas as borboletas ainda vivas.
Sinto os casulos rompendo,
pendurados pelas costelas.
Ao desdobrar-se batendo,
as asas por debaixo de minha lapela,
nesse calmo e tênue desespero,
que corre solto por caminhos desiguais,
preenchendo-me o peito
dessas lepidopteras estomacais.